O escritor Marco Haurélio nasceu em Riacho de Santana na
Bahia. Conviveu desde muito jovem com as manifestações da cultura popular
nordestina. Através de uma sensibilidade ímpar registrou a literatura oral do
sertão baiano.
É autor de uma produção poética elogiada por crítica e
leitores. Seu livro mais recente destina-se aos educadores do Brasil: Literatura
de Cordel – Do sertão à sala de aula.
Na penúltima sextilha de O romance do Príncipe do Reino do
Limo Verde, lemos:
Por
isso é que Marco Haurélio
Não
se rende nem se vende,
Luta
com as armas que tem:
Ora
ataca, ora defende.
Algumas
vezes ensina
E,
ensinando, ele aprende.
O escritor baiano concedeu uma entrevista exclusiva ao
nosso blog. Os amantes da cultura popular agradecem esse olhar identificador de
uma prática social longeva que ora se manifesta nas expressões espontâneas do
povo brasileiro.
ECL- Frequentemente se estabelece alguma confusão quando
se fala em cordel, embolada e repente. Quais seriam as diferenças entre estas
três manifestações?
MARCO HAURÉLIO- Bem, para
começo de conversa, o cordel pertence ao âmbito da literatura, ao passo que o
repente e a embolada são manifestações da oralidade. Embora o cordel se
vincule, como toda a poesia que chamo de bárdica, à oralidade, se diferencia do
repente e, mais ainda da embolada, por sua função. O repente está mais próximo
à tradição medieval dos menestréis, com a viola substituindo a bandurra e
outros elementos de cordas, e a embolada, com seus instrumentos de percussão,
se aproximam mais das tradições vindas da África. Embora, num país como o
Brasil, em que a pluralidade cultural salta aos olhos, estas fronteiras não
podem ser delimitadas com precisão.
ECL- No cerne da
cultura popular costuma se afirmar que Leandro Gomes de Barros é o “pai” da
literatura de cordel no Brasil. Conte nos sobre os feitos deste exímio
cordelista.
MARCO HAURÉLIO- Leandro
Gomes de Barros é o pai da literatura de cordel como a conhecemos hoje. O que
não significa que ele tenha sido o primeiro a escrever cordel no Brasil. Houve
outros antes dele, como João Santana de Maria, o Santaninha, citado por Sílvio
Romero. Mas é a partir dele, Leandro, dos temas que desenvolveu e das causas
que abraçou, que o cordel se consolidou. É esta semente, cultivada por mais de
um século, por poetas como José Camelo de Melo, Joaquim Batista de Sena, Manoel
Camilo dos Santos, Delarme Monteiro, Manoel D’Almeida Filho, e, atualmente, por
Rouxinol do Rinaré, Arievaldo Viana, Rafael Neto e Klévisson Viana, para ficar
em alguns, que Leandro plantou com o zelo dos que enxergam além. Por exemplo,
são dele a Peleja de Manoel Riachão com o
Diabo, base de todas as pelejas em que um cantador tem o demônio como
antagonista; a História da Donzela
Teodora, versão em cordel de um livro do povo que aproxima uma figura
arquetípica, a donzela sábia das Mil e uma noites, ao universo de disputas
verbais dos cantadores nordestinos; a Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, obra
que melhor aproveita um episódio do ciclo carolíngio, mais presente na tradição
das cavalhadas do que propriamente no cordel; e O cachorro dos mortos, talvez o melhor cordel dramático de todos os
tempos.
ECL- No seu livro Breve
História Da Literatura De Cordel encontramos a seguinte passagem: “As
narrativas populares, de fundo heroico, satírico ou religioso, impregnaram a
obra dos grandes escritores da Idade Média e do Renascimento”. Quais são os
autores mais importantes dessa época?
MARCO HAURÉLIO- São tantos,
e quase todos bebiam na fonte da oralidade. Para ficar em alguns: Chaucer,
autor dos Contos de Canteburry;
Boccaccio, que com o Decameron, forneceu
muitos temas à literatura picaresca; Rabelais, se insurgindo contra os modelos
clássicos em seu Gargantua; e William
Shakespeare, que foi buscar nas tradições populares de vários países a
inspiração para sua obra imortal.
ECL- No que diz
respeito às capas dos folhetos, sabe-se que antigamente eram chamadas de “capas
cegas”, ou seja, sem ilustrações. Com o passar do tempo desenhos e fotos
ganharam espaço. Como a xilogravura insere se neste contexto?
MARCO HAURÉLIO- A primeira
xilogravura apareceu, como fato isolado, em uma capa de um folheto de Francisco
das Chagas Batista, datado de 1907. Na década de 1930, era usada em pequena
escala, mas a preferência dos editores como João Martins de Athayde era pelo
desenho. Com a venda do espólio de Athayde, paraibano que estabeleceu indústria
gráfica no Recife e se tornou o maior editor
de cordel de todos os tempos, para o alagoano José Bernardo, que vivia
em Juazeiro do Norte (CE), a xilogravura passou a ser usada com mais
frequência. Juazeiro, como sabemos, é um centro religioso cuja vida cultural e
social gira até hoje em torno da figura do Padre Cícero Romão Batista. Havia, e
ainda há, na cidade muitos s que trabalhavam a madeira. Então, os clichês
zincografados, com os quais Athayde trabalhava, já velhos e gastos foram substituídos
por imagens talhadas na madeira por atesãos como Inocêncio da Costa Nick,
Walderedo Gonçalves e Damásio Paulo da Silva. E também pelo genial Stênio
Diniz, neto de José Bernardo. Paralelamente, na região de Caruaru (PE), cidade
do agreste famosa por sua feira celebrizada por Luiz Gonzaga, nos versos de
Onildo Almeida, os poetas desenvolveram um estilo mais simples, mas igualmente
marcante. É o que o pesquisador Jeová Franklin de Queirós denomina “escola
pernambucana”, que tem nomes como J. Borges, José Costa Leite e Jota Barros.
ECL- Como você
avalia o cordel na Literatura contemporânea? Os educadores podem de alguma
forma contribuir para o fomento da cultura popular junto aos educandos?
MARCO HAURÉLIO- O cordel na
atualidade está presente em duas frentes. Continua sendo vendido no meio
tradicional, mesmo sem o vigor dos tempos áureos, em cidades como Juazeiro do
Norte (CE), Bom Jesus da Lapa (BA), Canindé (CE), na Feira de São Cristóvão no
Rio de Janeiro, no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza e no Mercado Modelo,
em Salvador. Poetas como o baiano Zeca Pereira ainda correm de cidade em
cidade, com uma mala de folhetos, o que é louvável, pois alimenta a tradição
itinerante do cordel. Por outro lado, principalmente a partir da mostra Cem
Anos de Cordel, idealizada pelo jornalista Audálio Dantas, em 2001, que teve
como cenário o SESC Pompeia em São Paulo, grandes editoras passaram a se
interessar pelo gênero. A editora Hedra lançou, sob coordenação do saudoso
pesquisador Joseph Luyten, a coleção Biblioteca de Cordel. Em 2007, a Nova
Alexandria criou a coleção Clássicos em Cordel, sob minha coordenação, que já
se aproxima dos vinte títulos e traz autores como João Gomes de Sá, Klévisson
Viana, Moreira de Acopiara, Geraldo Amâncio Pereira, Varneci Nascimento,
Rouxinol do Rinaré, entre outros. Discute-se se esse novo cordel é um híbrido
ou somente a tradição atualizada. Mas o que chama a atenção é a vitalidade de
um gênero que, por várias vezes, teve a morte anunciada por pesquisadores como
Átila Almeida, mas soube se adaptar aos novos tempos e às demandas da
contemporaneidade. Nesse contexto, o cordel chega à sala de aula. Os educadores
podem — e devem — trabalhá-lo. Antes, porém, é preciso que pesquisem sua
história e características, para não confundirem o gênero, que é o cordel, com
o formato em que é publicado — predominantemente o folheto. Lamentavelmente, a
maior parte dos textos da internet, a começar pelo verbete na Wikipédia, que
traz uma espécie de linha evolutiva totalmente equivocada, misturando, de forma
gratuita, vários gêneros da chamada poesia popular.
ECL- Em que
contexto se deu a criação da “Caravana do Cordel” em São Paulo?
MARCO HAURÉLIO- A Caravana
do Cordel surgiu em 2009, mas foi gestada a partir de várias experiências dos
poetas nordestinos residentes em São Paulo. A princípio, o nome Caravana do
Cordel, sugestão minha, abarcava qualquer movimentação dos poetas, como, por
exemplo, a presença da coletividade no lançamento de um livro. A ideia
ganhou corpo como movimento, depois que um dos membros fundadores, o cearense
Costa Senna, sugeriu aos responsáveis pelo Espaço Cineclubista da Baixa Augusta
a realização de um encontro mensal de cordelistas. Assim, o evento passou a
chamar-se também Caravana do Cordel, ampliando o conceito. Antes disso, a
iniciativa pioneira de João Gomes de Sá, o Salão da Literatura de Cordel,
realizado em Guarulhos, forneceu o modelo seguido pela Caravana, respeitando a
característica e o potencial de cada membro. Depois, o evento tornou-se
itinerante e viajou pelo interior de São Paulo e de Minas Gerais. Hoje, por
conta da agenda de seus membros, as apresentações têm sido mais esparsas, mas o
conceito permanece.
Dica de Leitura:
Literatura de Cordel - Do Sertão à sala de aula.
Editora Paulus
Abraços,
Juliana Gobbe
Desde criança, sempre conheci o Cordel pelos livretos publicados pela editora Prelúdio, atualmente com o nome de Luzeiro. Não seria essa editora, que segundo consta tem mais de 1.000 títulos de sua propriedade, a maior publicadora de Cordel de todos os tempos?
ResponderExcluirJosué
Josué, considero a Luzeiro a maior casa publicadora do cordel no Brasil. Mas nenhum editor superou Athayde em quantidade de títulos publicados e faro editorial. Um erro recorrente no nosso meio é se confundir "editor", que nem sempre é o proprietário, com "editora", casa publicadora.
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