O dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht com uma
inconfundível percepção do capitalismo escreveu em Histórias
do sr. Keuner :
O sr. Keuner tinha pouco conhecimento dos homens. Ele
dizia: “Conhecimento dos homens só é necessário quando há exploração. Pensar
significa transformar. Quando penso em alguém eu o transformo, quase me parece
que ele não é absolutamente como é, mas que passou a ser assim quando comecei a
pensar sobre ele.
Em confluência com o pensamento brechtiano encontra-se Iná Camargo Costa. (Professora aposentada do
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas
FFLCH- USP). Com grande atuação no Brasil como pesquisadora, curadora e
palestrante de muitos debates sobre a arte em seu viés social, a professora,
estabeleceu desde sempre através de suas colocações um olhar crítico e lúcido sobre o teatro
épico no Brasil e seus desdobramentos no séc 21.
Em entrevista
exclusiva para o Espaço de Criação Literária Bertold Brecht a autora de A Hora do Teatro Épico no Brasil (Graal) , Sinta o Drama (Vozes), Panorama do Rio Vermelho (Nankin) e Nem uma Lágrima (Expressão Popular e Nankin) fala sobre o pensamento
dialético no teatro épico hoje, e, claro sobre: Brecht.
ECL- O surgimento do Centro Popular de Cultura (CPC) da
União Nacional dos Estudantes (UNE) constituiu um marco importante no teatro
brasileiro?
INÁ CAMARGO COSTA -Se entendermos por teatro
brasileiro o teatro convencional, não constituiu marco nenhum, pois este nem
tomou conhecimento do CPC. Mas se adotarmos o ponto de vista dos jovens
artistas que se envolveram com a sua fundação (como Vianinha, Chico de Assis e
João das Neves entre outros) e desenvolveram seu potencial artístico-político
em suas atividades, podemos até mesmo dividir a história do teatro convencional
em antes e depois do CPC. Basta lembrar que, depois de instaurada a ditadura e
destruído o CPC em 1964, o melhor e mais importante teatro brasileiro foi um
desenvolvimento de suas experiências, a começar pelo Show Opinião.
ECL - No prefácio do seu livro: A hora do teatro épico no Brasil
o crítico literário Roberto Schwarz ressalta que: “Com o golpe de estado de
1964, a trajetória que acompanhamos ficou interrompida. Como era inevitável, o
teatro em parte reagiu, em parte se ajustou, e em parte se ajustou reagindo”.
Existe na contemporaneidade um pensamento dialético no teatro brasileiro?
INÁ CAMARGO COSTA - Preferindo falar do que conheço,
acho que existem grupos teatrais que exercitam em cena um pensamento claramente
pautado pela dialética. Vou me limitar a enumerar alguns dos que conheço
melhor. No Rio de Janeiro existe a Companhia Ensaio Aberto; em Natal, o grupo
Alfenins; em Porto Alegre, o grupo Ói nóis aqui Traveis, e em São Paulo são
inúmeros: Folias d’Arte, Engenho Teatral, Companhia do Latão, Companhia do
Feijão, Antropofágica, Ocamorana, Brava, Dolores – para me limitar a exemplos
que me ocorrem sem precisar pensar muito.
Quanto à produção teórica,
prefiro deixar para vocês a tarefa de identificar os nossos companheiros na
academia, pois estou aposentada há exatos 10 anos e não sei o que anda
acontecendo por lá. Mas para me limitar a referir amigos que militam no teatro,
posso citar o Sérgio de Carvalho, que é da Companhia do Latão, o Márcio
Marciano, do grupo Alfenins, Luiz Fernando Lobo da Ensaio Aberto, Márcio Boaro
do Ocamorana, Moreira do Engenho, Zernesto e Pedro Pires do Feijão, Fábio e
demais companheiros da Brava, Tiago da Antropofágica, Luciano do Dolores e assim
por diante. Acho que, com esta enumeração que não é exaustiva, posso afirmar
que existe, sim, um pensamento dialético no teatro brasileiro.
ECL - Na década de 60 as concepções artísticas oriundas do
Agitprop aproximaram os atores brasileiros de uma visão mais politizada em
detrimento de um posicionamento puramente esteticista. Qual é o papel desse
movimento no século 21?
INÁ CAMARGO COSTA - Agitprop não é movimento cultural,
mas ação política definida por um partido revolucionário. O agitprop histórico
foi criado pelo partido de Lenin para desenvolver ações culturais com objetivos
políticos no âmbito da cultura durante a guerra civil (1918-1920) e depois foi
exportado para países como Alemanha, França e Estados Unidos. A questão
esteticista nem se colocava pois, para os artistas revolucionários, a “arte
pela arte” era o mesmo que “arte para o mercado”. Se o século 21 criar algum
partido capaz de fazer uma revolução e de mobilizar artistas para a causa, seu
papel será o mesmo: criar todas as modalidades de arte aptas para cultivar e
disseminar o ponto de vista da revolução proletária no âmbito da cultura.
ECL - A perspectiva do “teatro de militância” numa atuação
com forte viés social pode, de certa
forma, apontar um horizonte mais humanizador diante do ser humano diluído no
pós-modernismo?
INÁ CAMARGO COSTA - Não tenho a menor dúvida em relação a isso. Basta
pensar que o pós-modernismo é esteticismo de mercado cinicamente assumido.
Todos sabemos que o mercado pode ser qualquer coisa, menos humanizador. Ao
contrário: para além de o mercado se alimentar da mais-valia extraída dos trabalhadores,
sua função é escamotear esta alienação (ou extorsão, ou açambarcamento) da
mais-valia, cultivando o fetichismo da mercadoria. O pós-modernismo está totalmente
mergulhado neste fetichismo. Um “teatro de militância” que comece por denunciar
esta situação seguramente pode apontar para um horizonte simplesmente humano.
Não custa lembrar que uma das maneiras de definir o socialismo é a liquidação
da sociedade de classes, na qual a maioria produz a mais valia que alimenta o
parasitismo, a desumanidade e a barbárie da minoria.
ECL - Em seu livro mais recente: Nem uma lágrima, temos:
“Depois de Brecht não há mais lugar para uma estética normativa no
teatro". Qual é o legado que o dramaturgo alemão deixou para o ocidente?
INÀ CAMARGO COSTA - A geração de Brecht rompeu conscientemente com a
estética normativa dos críticos convencionais ao praticar – com conhecimento de
causa – o direito de trânsito por todas as formas culturais e gêneros
literários, misturando o que bem entendesse. Estes artistas descobriram que a
liberdade na arte deve ser exercida tanto no plano da escolha dos assuntos
quanto no plano das formas e técnicas, sem aceitar ordens nem vetos de nenhuma
instância que não fosse sua própria consciência artística e política. Para além
de uma obra literária de amplo alcance – teatro, romance e poesia –, Brecht
deixou inúmeros escritos teóricos que ajudam a entender a sua luta e a de todos
os artistas do ocidente. Este é o legado pelo qual ele responde pessoalmente,
mas há também o exemplo do artista que nunca se enganou com o canto de sereia
do mercado, nem se curvou ao moralismo dos esteticistas que pregavam a renúncia
aos meios de produção cultural controlados pelo inimigo. Pelo contrário, ele
recomendava a luta pela socialização destes meios de produção também,
entendendo que uma forma de travá-la dependia da atuação em seu interior, na
condição de artista assalariado.
Dica de Leitura:
Abraço,
Juliana Gobbe
Nenhum comentário:
Postar um comentário