O escritor russo Máximo Górki afirmou certa vez que a única
coisa que transcende a existência do ser humano é a sua obra. Frase que valida
a trajetória do brasileiro Graciliano Ramos. Em comum entre os dois autores
temos a incompreensão por parte de muitos críticos, a existência tumultuada e dois
livros autobiográficos que carregam o mesmo título: Infância.
Mas, o fato de maior importância que se alinha nos
desvãos da história é que tanto em um como em outro, além do inquestionável
talento, temos a luta que se trava pelo reverso daquilo que nos foi
estabelecido.
Longe das amarras de um ufanismo desarrazoado é urgente
reencontrar em Graciliano um Brasil que a cultura de massa insiste em jogar
fora.
Nesses tempos de palavras mornas, fomentadas pela aclamação
fácil e excessivamente mercadológica, Dênis de Moraes nos presenteia com a
reedição da biografia: O velho Graça. Um momento de
leitura substancial para os admiradores de um escritor singular na história da
literatura brasileira.
Confiram a entrevista que Dênis de Moraes, considerado o
melhor biógrafo de Graciliano Ramos, concedeu ao Espaço de Criação Literária
Bertold Brecht.
Arquivo pessoal: Dênis de Moraes
ECL-Quais livros formaram o leitor Dênis de Moraes?
DÊNIS DE MORAES - Sou filho de um grande professor de literatura
brasileira e portuguesa. Foi ele o meu mestre na formação do gosto literário e
na paixão pela literatura como possibilidade de expressão e tradução da
condição humana. E não é casual o fato de meus autores fundamentais serem
compartilhados com meu saudoso pai. Graciliano Ramos (Vidas secas, São
Bernardo, Memórias do cárcere), Carlos Drummond de Andrade,
Fernando Pessoa e Clarice Lispector.
ECL- Conte-nos sobre sua motivação em reeditar “ O velho Graça” vinte
anos após a 1ª edição?
DÊNIS DE MORAES- O livro estava esgotado há vários anos, e considerei
que os 120 anos de nascimento de Graciliano, completados em 27/10/2012,
constituíam uma ocasião propícia para relançá-lo. Chamo a atenção para o fato
de que introduzi acréscimos no texto original. Dois deles me parecem
significativos. Consegui localizar e destacar as principais questões abordadas
nas cinco entrevistas expressivas que Graciliano concedeu ao longo da vida. Ele
era esquivo e costumava driblar o assédio de repórteres dizendo que não tinha
nada de útil a dizer... Os jornalistas Francisco de Assis Barbosa, Homero
Senna, Newton Rodrigues, João Condé e Joel Silveira, durante a década de 1940,
conseguiram a proeza de dobrá-lo e obtiveram declarações interessantes sobre o
seu processo de criação (reescrevia obsessivamente os textos e cortava o que
chamava de “gorduras”, com uma régua guiando seu lápis implacável); o papel do
escritor na sociedade (ressaltava que a literatura deve preservar sua autonomia
frente à política, sem deixar de refleti-la); e suas preferências literárias.
Outro acréscimo relevante foi a carta que Graciliano chegou a redigir e
jamais enviou ao então presidente Getúlio Vargas, em 1938. Um desabafo sobre as
dificuldades enfrentadas durante e depois do período da prisão (entre 3 de
março de 1936 e 10 de janeiro de 1937). A carta, de uma lauda, era respeitosa,
ainda que com algumas ironias, como, por exemplo, ao qualificar Vargas como
“meu colega de profissão”, numa alusão ao ingresso do ditador na Academia
Brasileira de Letras com apenas um livro de discursos.... É evidente que
elegeu Vargas como destinatário numa tentativa de questionar o chefe do
regime que o encarcerara sem processo ou culpa formada.
Arquivo pessoal: Dênis de Moraes
ECL- No prefácio à 1ª edição de “O velho Graça”, Carlos Nélson Coutinho
nos brinda com o seguinte excerto: “Vemos, por exemplo, como não bastou a
Graciliano, para se tornar um excepcional escritor, a profunda e empática
vivência com os problemas da sua região, do seu povo”. Qual é o legado que o
escritor alagoano deixou ao Brasil?
DÊNIS DE MORAES- Poucos escritores de sua geração demonstraram
tanto compromisso com o homem brasileiro como Graciliano. Ele fez de sua
criação literária um instrumento de interpretação e reintervenção na realidade
social e política do país, sempre com um olhar de compaixão para com os
excluídos e os que sofrem com as explorações de qualquer natureza. Sua obra
sempre se pôs ao lado do povo nordestino, buscando retratar seus problemas,
carências, conflitos e anseios. Qual escritor foi capaz de recriar
esteticamente o drama da seca, com tamanha verossimilhança e tanto sentimento
de partilha e solidariedade, quanto o Graciliano de Vidas secas? Por
merecimento, é hoje um clássico universal. Isso se deve a seu compromisso
inabalável com a condição humana. Sua obra, como poucas, reflete solidariedade
e sensibilidade para com as aspirações, as vicissitudes e as expectativas dos
homens na passagem pela Terra. Foi um dos escritores que demonstraram maior empenho
em compreender as variações e as manifestações contraditórias e belas da alma
humana. Está acima dos tempos históricos; comunica-se com todos os tempos,
todos os contextos e todas as situações que envolvem o indivíduo e a
coletividade em seus embates com as circunstâncias da vida.
ECL- Os literatos hoje perseguem em sua maioria, características técnicas
se apropriando muitas vezes de um discurso puramente estético. Como você avalia
o atual momento literário no nosso país?
DÊNIS DE MORAES- Vou responder à pergunta tentando imaginar o que
Graciliano Ramos diria. Talvez dissesse que está na hora de reviver o
realismo crítico, mais compromissado socialmente e capaz de se sensibilizar
pelo destino do homem brasileiro, com suas aspirações, sofrimentos,
inquietações e experiências. Com as exceções que merecem respeito e
consideração, a literatura atual está comportada e resignada demais. Graciliano
repetiria que é preciso torná-la mais instigante e crítica, porque, como ele
ressaltava, “a arma do escritor é o lápis”.
ECL- Em 1.927, Graciliano foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios.
Sabe-se também da inserção do autor no PCB. Até que ponto a veia política
influenciou a produção literária?
DÊNIS DE MORAES- De um lado, Graciliano sustentava que a
literatura não pode ser reduzia à ideologia, pois a especificidade do trabalho
criativo se sobrepõe às exigências políticas imediatas e aos fervores
revolucionários. De outro lado, a política sempre o atraiu muito, desde o
noticiário sobre a Revolução Russa de 1917, da qual se inteirou pela assinatura
de jornais do Rio que chegavam de trem, com enorme atraso, a Palmeira dos
Índios. Autodidata em idiomas desde a adolescência, ele conseguia ler textos de
Marx e Lenin em francês, através de encomendas pelo reembolso postal
a livrarias cariocas que importavam títulos estrangeiros. Embora ainda não
fosse comunista, logo se aproximou de ideias libertárias. A paixão política o
fez aceitar a candidatura a prefeito de Palmeira dos Índios, depois de receber
apelos de muitos frequentadores da sua loja de tecidos, que o viam como uma
reserva moral e de honradez na cidade, e também em resposta aos boatos de que
relutava disputar a Prefeitura com medo de perder. A sua administração ainda
hoje é considerada uma referência de administração séria, honesta
e empreendedora. Combateu privilégios, acabou com a corrupção e o
endividamento público, priorizou obras nos bairros pobres e na periferia,
reformou escolas públicas, fez cumprir o Código de Posturas para frear a
desordem urbana que imperava na cidade. E não nos esqueçamos que, de 1945
até a sua passagem, em 20/3/1953, foi militante do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Graciliano acreditava firmemente que o socialismo era o caminho
para a justiça e a emancipação sociais. Sua militância se caracterizou por
extrema lealdade à causa socialista e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), no
qual ingressou em 18 de agosto de 1945, a convite do então secretário-geral,
Luiz Carlos Pretes. Mas é importante insistir que Graciliano não admitia a
tutela ideológica sobre a criação literária. Ele entendia, lucidamente, que,
por mais solidários que sejam às causas populares, escritores e artistas não
podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes
indique as ferramentas do ofício.
ECL- Discorra sobre “a dor e a delícia” de ser um dos grandes
biógrafos de Graciliano no Brasil?
DÊNIS
DE MORAES- Dor nenhuma, a não ser a dor que eu, Graciliano e todos os que
lutamos por uma sociedade justa e igualitária sentimos diante de um mundo tão
injusto e, como bem acentuava o mestre Milton Santos, perverso. Delícias
múltiplas, como desvendar segredos e mistérios, saber mais do que está no
livro, ter conhecido Heloísa de Medeiros Ramos (grande mulher e viúva do
romancista) e me aconselhar com Graciliano sempre que tenho dúvidas e preciso
que me digam que não posso transigir no que é essencial.
O Velho Graça
Autor: Dênis de Moraes
Boitempo Editorial
Abraços,
Juliana Gobbe
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