domingo, 29 de janeiro de 2012

Bobo e sua corte


Já reparou como os termos “Bobo” e “Tolo” têm sinônimos? Dentre tantos, “Doidivanas” sempre me chamou a atenção. Acho que foi lendo algum romance de cavalaria ou livro de Julio Diniz que vi a palavra pela primeira vez. Recorri a um pequeno e nada confiável dicionário e encontrei lá: “Doidivanas: o mesmo que Estouvado”. Fui em “Estouvado” e li: o mesmo que Doidivanas. Ou seja, o pai dos burros me fez de bobo.
Ser bobo vai além de ser otário. Tem também o sentido de ignorante, que contempla como sinônimos uma extensa família de quadrúpedes: besta, asno, jerico, jumento, jegue e simpatizantes. Sem falar da anta e da toupeira.
Fora do reino animal, um dos meus favoritos é “Bocó”, quase um arcaísmo atualmente. Melhor ainda é “Bocó de Mola”, que sugere um upgrade na acepção original (ou um downgrade, no caso).
Igualmente em desuso está o “Monte”. Largamente empregado na zona rural de São João da Boa Vista e adjacências nos anos 70, o vocábulo com toda certeza é oriundo do sul de Minas. Não sei se continua vigindo. Monte é, basicamente, o mala de hoje. Tem o significado de empecilho, estorvo que fica no meio, atrapalhando tudo e empatando a f…
Vamos ao “Tonto”. Ele é parecido com o bobo, mas não é a mesma coisa. O bobo é menos bobo que o tonto. Historicamente o bobo tem ofício definido. Como todos sabem, era ele quem divertia os reis nas cortes medievais. O tonto, por sua vez, é um Mane-Quarqué (que me perdoem meus leitores Manoéis ou Manuéis), um “Girolas” inofensivo. Por falar em Mané, há que se mencionar aqui os derivativos “Mané-Coco” e “Mané-Jacá”, além do conhecidíssimo “Mané-Patola”, a quem algumas populações ribeirinhas denominam simplesmente de “Patola”.
Temos ainda o “Boboca”, que imagino um semi-bobo, aspirante a bobo ou algo que o valha. É mais do que um bobinho, mas é menos que um bobo 100% genuíno. Na mesma classe estão os “Parvos”, a bradarem suas parvoíces em qualquer tempo e lugar.
A letra “P” é rica em sinônimos de lesos: temos, entre outros verbetes, “Palerma”, “Paspalho” e “Pateta” – todos com sentido semelhante e QI idem.
Na letra “T”, além do tolo e da toupeira já citados, encontramos o “Tapado”. Por analogia, podemos caracterizá-lo como um surdo-mudo neurológico. Nada é capaz de permear sua couraça obtusa. Pra cantar a “Florentina” do Tiririca ele precisa olhar a letra.
Capítulo à parte merecem o “Doido de Pedra” e o “Doido Varrido”, mas não serei eu o maluco a atribuir-lhes o sentido. Só imagino um napoleão-de-hospício esculpido em mármore e um serzinho com camisa de força se debatendo entre ramos de piaçava.
O “Abestado” é tão inclassificável que nem é aceito pelo Aurélio. O insigne dicionarista o cataloga como “Abestalhado” – que particularmente considero um tanto quanto articulado para o caso. Abestado é infinitamente mais besta que abestalhado, concorda?
Muitos termos possuem a mesma raiz etimológica, mas gradientes peculiares de significado. Compare “burro” e “burraldo”. O leitor logo perceberá que o burraldo puxa a carroça com mais força. O burraldo é o burro xucro, incorrigível, que deixa o rastro das ferraduras por onde quer que passe. O burro é menos pretensioso na escala búrrica – de vez em quando é capaz de falar coisa com coisa. Muito de vez em quando, mas é.
“Babaca” e “Panaca”. Mesmo que a grosso modo não pareça, entre eles há uma notável diferença. A grafia semelhante esconde na verdade um abismo conotativo. Explico: o panaca é mais lorpa que o babaca. Panaca ri das cenas de torta na cara; já o babaca não acha mais graça nisso, não. Na escala evolutiva, está um degrau acima do panaca. O máximo que o babaca faz é chifrinho nas fotos de festa de aniversário, embora afirme aos mais chegados que já abandonou o vício.
Pouca gente se dá conta, mas “imbecil” e “idiota” não são propriamente xingos. Idiotia e imbecilidade são estados psíquicos – patologias catalogadas e estudadas pela psiquiatria moderna. Psiquiatria que já vem se debruçando sobre os “Seqüelados” e os “Sem-Noção” – neo-zuretas desse insano início de século 21.
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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 14 de janeiro de 2012

O culpado de tudo.

Termina no dia 29 de janeiro no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo a mostra: "O culpado de tudo" a exposição organizada por José Miguel Wisnik reúne um pouco da vida e obra do escritor Oswald de Andrade um dos grandes vultos do modernismo brasileiro. Vale a pena conferir!



 Maiores informações:
 (11) 3326-0775
  museu@museulp.org.br

Dica de leitura: Serafim Ponte Grande
Autor: Oswald de Andrade
Abraços,
Juliana Gobbe

sábado, 7 de janeiro de 2012

Conversas literárias com André Carneiro

                                                                     Foto: Luís Fernando Bueno




André Carneiro é atibaiano, como prefere,  ao invés de  atibaiense. Pertenceu ao movimento literário batizado de  Geração de 1945. Navegou por todas as artes, antecipando em  quase  meio século a ideia de interdisciplinaridade.  Leu mais de 4.000 livros, inclusive em francês e inglês. Escreveu e desenvolveu temas em 360 graus. É  conhecido  e reconhecido no exterior.  As personagens criadas por André Carneiro usavam celulares com naturalidade, quando a humanidade mal conhecia a televisão.
No final de 2.011 tivemos a grata satisfação de estar com o autor discorrendo sobre os caminhos da literatura moderna. O encontro com os escritores aconteceu em Atibaia. Atualmente André reside em Curitiba PR.
Ao falar sobre ficção científica, assunto sobejamente utilizado pelo mesmo em seus contos, o autor relatou-nos sobre A escuridão cujo tema é bem parecido com o de Ensaio sobre a cegueira do português José Saramago, curiosamente o conto de André foi publicado dez anos antes da publicação de Saramago.
O Espaço de Criação Literária agradece a gentileza de André Carneiro que nos recebeu com a alegria típica dos amantes das belas artes.

                                                                   Foto: Luís Fernando Bueno



A Escuridão

Wladas aceitou a realidade do fenômeno mais tarde do que os outros. Era solteiro, distraído e muito prático. Somente no segundo dia, quando todos comentavam o dia escuro que crescia e as luzes mais fracas, ele admitiu que sim. Uma velha falava aos gritos que o mundo ia se acabar. Formavam-se rodas, com maioria de explicações metafísicas, misturadas aos comentários científicos dos jornais. Ele foi trabalhar, normalmente. O próprio chefe, sempre distante, estava à janela, conversando com intimidade. A maior parte dos funcionários não viera. O vasto salão, cheio de mesas, quase despovoado, definia o grau de importância do acontecimento. Lembrou-se da revolução, na sua juventude. Algo que irrompe, à nossa revelia e nos carrega para um destino que não escolhemos. Mas, fora diferente a revolução. Tiros, bombardeios, mortes. Agora era um fenômeno estranho, é verdade, mas que não atingiria a altura de calamidade pública. Os que se preocupam com o tempo foram os primeiros a observar. A luz do sol parecia mais enfraquecida, as casas e objetos cercados de uma crescente penumbra. No início julgaram ser uma ilusão ótica, mas, à noite, a própria luz elétrica estava mais fraca. As mulheres notaram que os líquidos não chegavam a ferver e os alimentos permaneciam duros. Wladas aproximou-se do chefe. Citavam-se as opiniões competentes, ouvidas no rádio. Eram vagas e contraditórias. Pessoas nervosas provocavam pânico e as estações ferroviárias e rodoviárias estavam repletas com milhares de retirantes, não se sabe para onde. Wladas duvidava que o fenômeno fosse universal como as notícias diziam.

Os últimos telegramas afirmavam que a sombra aumentava rapidamente. Alguém riscou um fósforo e começaram as experiências que se faziam em toda a parte: acendiam isqueiros, lanternas elétricas e se dirigiam para os cantos, notando a chama e a luz mais fracas. As lâmpadas não iluminavam como antes. Doença visual coletiva não podia ser. Passavam os dedos pelo fogo sem queimá-los. Havia medo em muitos, mas Wladas não sentia nenhum. Aquela animação geral, o assunto único dominando as conversas, aproximando todos, era um espetáculo humano que fazia esquecer as inquietudes do amanhã. Voltou para casa às dezesseis horas, as luzes estavam acesas. Não iluminavam quase nada, pareciam bolas avermelhadas, como sinais de perigo. No bar onde tomava suas refeições conseguiu que lhe servissem sanduíches frios. Só havia o dono e um garçom, que foram embora depois, andando lentamente pela penumbra.
Wladas chegou sem dificuldades a seu apartamento. Estava habituado a voltar tarde sem acender a luz do corredor. O elevador não funcionava, veio pela escada ao seu terceiro andar. Ligou com todo volume seu rádio portátil e mesmo no ouvido percebia sons longínquos, não sabia se vozes ou estática. Sentou-se à beira da cama com uma penosa sensação de isolamento. Abriu a janela e o confortaram as milhares de bolas vermelhas, lâmpadas acesas nos grandes prédios, cujas silhuetas pouco se destacavam no céu sem estrelas. Às apalpadelas, Wladas achou uma vela em uma gaveta e a acendeu. A chama, sem calor, era curta e pálida, mal se vendo as horas do relógio de pulso a um palmo de distância. Sentiu-se triste e mal. Devia ser a ausência de trânsito, nenhum bonde ou automóvel a passar nas ruas, e gritos e vozes distantes, talvez gente extraviada, pais de família voltando a pé dos seus empregos. Não fosse a luz da vela, dir-se-ia um defeito da eletricidade. Foi à geladeira e bebeu um copo de leite. O gelo se desprendia com um ruído seco, o motor não trabalhava. O mesmo aconteceria com a bomba de recalque. Em breve a caixa d’água do prédio se esgotaria. Pôs a tampa da válvula na banheira e encheu-a completamente. Achou sua lanterna elétrica de três pilhas e percorria o pequeno apartamento, na ânsia de localizar seus pertences, sob a luz débil. Deixou as latas de leite em pó, doces e comida em cima da mesa da cozinha. Havia bolachas e uma caixa de bombons. Quem morasse em família se ajudaria mutuamente. Ele tinha que se cuidar, prever o pior. Fechou as janelas, apagou as luzes e deitou-se. Um arrepio passou-lhe pelo corpo, sentiu a realidade do perigo. Nunca ocorrera uma escuridão igual, na história da terra. Não era a claridade do sol que se apagava somente, mas tudo que emitisse luz, fagulhas e calor luminoso, as fogueiras, chispas dos rebolos e motores, as substâncias químicas, os vagalumes e lanternas. Wladas sabia, os últimos jornais o publicaram. Tinham parado também, com os automóveis, caminhões, bondes, aviões e trens. Ouviam-se gritos e chamados ao longe. Wladas procurou relaxar os músculos e dormir. No dia seguinte tudo se normalizaria. Voltariam as luzes, rádios, veículos...
Dormiu um sono agitado, com sonhos confusos e desagradáveis. Chorava uma criança no apartamento vizinho, pedindo à mãe que acendesse a lâmpada. Acordou sobressaltado. Com a lanterna elétrica colada ao relógio, viu que eram oito horas da manhã. Saltou da cama, abriu as janelas. A escuridão era quase total. No lado do nascente via-se o sol, vermelho e redondo, como se estivesse atrás de um espesso vidro enfumaçado. Na rua os vultos passavam como silhuetas. Wladas com dificuldade lavou-se, foi à cozinha, tomou leite condensado e bolachas. A força do hábito fê-lo pensar no emprego. Percebeu que não tinha nem sabia para onde ir. Lembrou-se do terror infantil quando o fecharam em um armário. Faltava ar e o escuro o oprimia. Respirou profundamente na janela. No fundo preto do céu, o disco vermelho do sol. Esforçou-se para raciocinar com calma, fazer deduções. No início os cientistas tinham feito hipóteses e análises. A eletricidade conseguia ainda fazer girar a rotativa dos jornais e os rádios emitiam sons em seus alto-falantes, agora mudos. O que o governo estaria fazendo para proteger a todos? Inexplicável que os raios do sol desapareciam e a temperatura continuava normal. Seria um gás desconhecido e invisível que alterava as leis comuns. Wladas não conseguiu coordenar o pensamento, a escuridão insinuava-lhe a vontade de correr em busca de auxílio. Fechou os punhos, repetiu para si mesmo: “Preciso manter a calma, defender minha vida até que se normalize tudo”.
Tinha uma irmã casada morando a três quarteirões de distância. A necessidade de comunicar-se com alguém fê-lo decidir-se a ir até lá, ajudá-los no que fosse possível. Colocou a lanterna elétrica no bolso, embora de nada mais valesse. Fechou a porta do apartamento e na escuridão do corredor foi andando em direção à escada, apoiando-se na parede. Abriu-se uma porta ao lado, uma voz ansiosa de homem perguntou: “Quem está aí?”. “Sou eu, Wladas, do apartamento 312”, respondeu. Sabia quem era, um senhor grisalho, com mulher e dois filhos. “Por favor”, pediu, “diga a minha mulher que a escuridão vai passar, ela está chorando desde ontem, as crianças com medo”. Wladas aproximou-se, devagar. A mulher parecia estar ao lado do marido, a soluçar baixinho. Procurou sorrir, embora não o vissem: “Fique tranqüila, minha senhora, é só a escuridão mas ainda se vê o sol, lá fora. Não há perigo, vai passar logo”. “Você está ouvindo”, o homem secundou, “é só a escuridão, ninguém vai sofrer nada, você precisa se acalmar por causa das crianças”. Pelos ruídos Wladas sentiu que estavam agarrados uns aos outros. Ficou em silêncio uns segundos e afastou-se: “Tenho de ir agora, se vocês precisam de alguma coisa...” O homem despediu-se, animando a mulher: “Não, muito obrigado, isto vai passar, até logo”. Nas escadas não se enxergava nada. Wladas desceu apoiado ao corrimão. Ouvia trechos de conversas pelas portas dos apartamentos. A falta de luz fazia com que falassem mais alto ou as vozes se destacavam no silêncio geral.
Chegou até a rua. O sol estava alto mas nada iluminava, praticamente, talvez menos do que a lua no minguante. De vez em quando passavam homens, sozinhos ou em grupos. Falavam em voz alta, alguns brincavam ainda, tropeçando nas depressões da rua. Wladas começou a andar devagar, visualizando mentalmente o caminho para a casa de sua irmã. O clarão avermelhado diminuía nas silhuetas dos prédios. Com os braços estendidos, mal se podia perceber os dedos. Andava com cautela, admirando-se dos que passavam às pressas. De um terraço qualquer vinha o latido de um cãozinho. E choro a distância, gritos confusos de chamado. Alguém caminhava rezando.
Wladas, colado às paredes para que não o colidissem. Devia estar na metade do caminho. Parou para respirar. Os pulmões arfavam em busca de ar, os músculos tensos e cansados. Único ponto de referência era a mancha do sol a desaparecer. Por um instante imaginou que os outros enxergassem mais do que ele. Mas, gritos e vozes de todos os lados alteavam-se. Wladas girou a cabeça. O disco vermelho pulsando desaparecera. O negro era absoluto. Um homem passou gritando em outra língua. Percebia-se ruído de quedas, palavras entrecortadas. Wladas tirou fósforos do bolso e riscou-os com cuidado. Ouvia-se o ruído característico e nenhuma chama surgia. Acendeu a lanterna diante dos olhos: nada. Apertando as pálpebras dançavam clarões. O que fazer? Ficar parado a perscrutar choros de crianças medrosas e dos que perdiam o controle poderia levá-lo a decisões irrefletidas. A escuridão era total. Sem a silhueta dos prédios, sentiu-se perdido. Memorizou o trajeto que fizera até ali. Impossível continuar. Tentaria voltar ao apartamento. Que horas seriam? Pôs o relógio de pulso no ouvido. Não conseguiu abrir com a unha a tampa de vidro, para sentir o ponteiro pelo tato. A mão direita tocando a parede, a esquerda em arco na sua frente, começou a voltar, os pés arrastando-se na calçada. Conhecia aquele trecho, suas mãos identificavam algumas portas e vitrinas. Transpirava e tremia, os sentidos concentrados no caminho de retorno.
Ao virar a esquina ouviu palavras incompreensíveis de homem vindo em sua direção. Talvez bêbado, a gritar, agarrou-se a Wladas com força, que procurava se desvencilhar, pedindo calma. Ele gritava mais ainda, coisas sem sentido. Wladas segurou-lhe a garganta com desespero, empurrou-o para trás. O homem caiu, começou a gemer. Braços estendidos para a frente, em defesa, Wladas andara um pouco, à espera. O bêbado chorava e gemia, com dores. Pensou em falar com ele, socorrê-lo, mas a luta o esgotara. Teve receio de ser subjugado e afastou-se devagar, o homem a chorar, uma janela solta a bater e ruídos que surgiam de dentro das casas e apartamentos, antes abafados pelos motores, rádios e veículos. Dentro da escuridão Wladas chegou até a sua casa. As mãos apalpavam, reconhecendo portas de bares, muros de residência e seus portões. Na alegria de chegar, caiu nos primeiros degraus da sua escada. Alguém gritou: “Quem está aí?” “Sou eu, Wladas, do terceiro andar”. A voz perguntou: “Você esteve lá fora? Enxerga-se alguma coisa em algum lugar?” – “Não, não se enxerga nada em lugar nenhum”. Houve um silêncio e ele subiu devagar. Voltava ao apartamento. Lá sabia a posição dos móveis e objetos, podia controlar os pertences familiares até que o pesadelo terminasse. Movendo-se com cuidado, abriu sua porta e deitou-se na cama.
Foi um repouso curto e ansioso. Não podia soltar os músculos, pensar com tranqüilidade. Arrastou-se até a cozinha, com uma faca conseguiu abrir o relógio. Apalpou os ponteiros. Eram onze horas ou meio-dia, aproximados. Não tinha fome mas abriu a geladeira, comendo o sanduíche guardado na véspera. A água pingava do congelador, o gelo inteiramente derretido. Com lentidão dissolveu leite em pó em um copo d’água e bebeu-o. Voltou ao quarto, deitou-se, mas achou impossível ficar mergulhado nos pensamentos, sem providência a tomar. Bateram na porta de entrada, seu coração correu acelerado. Gritou que esperassem, chegou até ela, perguntou de quem se tratava, antes de abrir. Pela resposta soube que era o vizinho grisalho. Tivera dificuldades em achar a porta certa, pedia água para as crianças. Wladas contou-lhe da banheira cheia e foi com ele buscar a esposa e os filhos. Sua prudência valera. Pegaram um na mão do outro e a corrente foi deslizando pelo corredor, as crianças mais calmas, até a mulher parou de chorar, a repetir “obrigada, muito obrigada”. Wladas conduziu-os à cozinha, fez que sentassem, os meninos no colo da mãe. Apalpou o armário, quebrou um copo, achou uma vasilha de alumínio que encheu na banheira e levou à mesa. Entregava xícaras de água aos dedos que o procuravam. Sem enxergar não as mantinha no nível, a água escorria pela mão. Enquanto bebiam, pensava se lhes devia oferecer alimento. O menino agradeceu e disse que tinha fome. Wladas pegou a lata grande de leite em pó e começou a prepará-lo com precauções. À medida que fazia os gestos lentos de abrir a lata, contar as colheres e misturá-las com água, falava em voz alta e o animavam, recomendando cuidado e aplaudindo sua habilidade. Levou mais de uma hora distribuir a todos e fez-lhe bem o esforço de não enganar-se, a certeza de estar sendo útil.
Um dos meninos riu de uma brincadeira. Pela primeira vez, desde que escurecera, Wladas sentiu otimismo, a impressão de que tudo terminaria bem. Com argumentos lógicos provou que aquela sombra estranha não poderia se demorar de forma alguma. Era contraditório e embaraçava as deduções. Mas o senhor grisalho e sua família o apoiavam com exclamações, como se ele, sozinho, tivesse o poder de reconduzir tudo à normalidade. Passaram a tarde no seu apartamento, procurando falar, mesmo sem assunto, a pesquisar, debruçados na janela, alguma luz distante, a percebê-la às vezes, entusiasmados, para descobrir o engano, que não admitiam, talvez fosse um clarão que surgira e desaparecera. Wladas ficara o líder daquela família, os alimentava e conduzia pelo pequeno mundo de quatro aposentos, que ele conhecia de “olhos fechados”... Ficaram ocupados à tarde, fazendo pouca coisa, pelo tempo gasto com os gestos mais simples, uma cadeira a ser transportada, objetos caídos que não apareciam. Foram embora às nove ou dez da noite, de mãos dadas, Wladas acompanhou-os, ajudou a acomodar as crianças. Por um momento dir-se-ia que somente um fusível queimara, brincavam e riam. Dentro da escuridão outros sofriam, doentes e com dores, sem médicos ou medicamentos, crianças com fome e sede. Nas ruas, pais desesperados gritavam, pedindo comida. Wladas fechara as janelas para não ouvi-los. O que tinha, daria para mais um dia ou dois, alimentando os cinco. Seu vizinho, emocionado, pediu que ele ficasse com eles, as crianças sentir-se-iam melhor. Ele acedeu. Voltou ao seu apartamento, onde se arrumou. Pôs um pijama, requinte que ninguém notaria. Fechou sua porta para prevenir uma invasão improvável. Foi confortador as crianças saudarem sua chegada: “Tio Wladas já está aqui, mamãe!” Sentiu-se comovido, não era preciso disfarçar, no escuro. É falha a memória visual. Wladas lembrava-se vagamente da fisionomia dos seus novos amigos que, antes, apenas vislumbrava em suas idas e vindas. Foi instalado em um grande sofá posto ao lado do quarto, na sala. Conversaram, deitados, as palavras como elos de presença e companhia. Acabaram dormindo, a cabeça debaixo do travesseiro, como náufragos agarrados a uma tábua ouvem pedidos de socorro sem poder acudi-los. Adormeceram, ou talvez estivessem quietos, fingindo, para não incomodar os outros. O que faria o mundo submerso em negro, para não perecer? A janela deixava filtrar os apelos. Às vezes era só um: “Socorro, preciso comida”. Outros faziam descrições aos berros, andando em ziguezagues pelas ruas cheias de detritos, contando da família sem alimentos. Wladas procurava não pensar. Apertava o travesseiro na cabeça, repetindo que nada podia fazer. Dormiram, premidos pelo cansaço, a sonhar com um amanhecer de céu azul, o sol a inundar os quartos, os olhos em jejum se alimentando de todas as cores. Foi diferente. Wladas sentou-se no sofá e o vizinho sussurrou: “Senhor Wladas, está se levantando?” Ele deixara uma faca na cadeira para descobrir as horas. Estava prático, levantou a tampa: oito horas mais ou menos. Os outros se agitaram e iniciou-se a complicada toilette, feita com um caldeirão de água trazido por Wladas, que iniciou com cuidado a preparação dos copos de leite e a separação das bolachas em rações iguais. A procissão de mãos dadas reiniciou a ida à cozinha onde tomaram a refeição frugal. As crianças batiam nos móveis, perdiam-se na sala pequena, a mãe os repreendia ansiosa. Quando se acomodaram pelas poltronas não sabiam o que fazer. Os copos usados permaneceram sujos para não esperdiçar água.
Repisaram as causas do fenômeno, inventando razões e hipóteses que transcendiam a ciência. Até ali suportavam as dificuldades com a esperança de voltar logo à normalidade, talvez àquelas horas mesmo. Wladas lembrou imprudentemente que a situação poderia se prolongar para sempre. A mulher começou a chorar, foi difícil acalmá-la. As crianças faziam perguntas impossíveis de responder. Wladas apalpava os ponteiros do tempo, sem plano para agir. Deu-lhe uma ânsia de fazer algo, levantou-se, ia sair para investigar. Eles protestaram, seria perigoso e inútil. Apoiavam-se nele, tinham medo de ficar sozinhos e perdê-lo. Teve de garantir que não se afastaria mais de vinte metros do prédio, até a esquina, que não atravessaria a rua etc. Pegaram em sua mão, antes de sair.
Chegou logo à escada, descendo mais depressa. Seus pés tocavam obstáculos difíceis de identificar. Ultrapassou a porta principal do prédio, encostado à parede, à escuta. Um vento frio sibilava nos fios, arrastava papéis com ruído fofo. Havia latidos muito longe, que às vezes recrudesciam, e vozes, muitas e ininteligíveis. Wladas lembrou-se dos passeios na fazenda do avô. Só entre as árvores, ele ouvira também o vento sacudindo as folhas e trazendo restos de conversas das casinhas de outro lado do morro. Estava parado, tenso, em expectativa. Andou alguns metros. Só os ouvidos captavam o pulsar da cidade afogada. De olhos abertos ou fechados, era o mesmo poço negro sem fim nem começo. Terrível ficar ali, quieto, à espera de nada.
Os fantasmas da infância cercaram Wladas e ele voltou para o prédio quase correndo, arranhando as mãos em toques pelas paredes, tropeçando nos degraus, subindo depressa, enquanto vozes medrosas gritavam: “Quem está aí, quem está aí?”. Ele respondia, sem fôlego, pulando degraus de dois em dois, até chegar entre seus amigos que se colidiam para encontrá-lo, temerosos de que estivesse ferido, a lhe perguntar o que acontecera. Sentou-se e respirou, aliviado. Riu e confessou que tivera medo, subira correndo. Lá fora estava no mesmo. Ficaram encerrados o resto do dia, se se podia empregar a palavra. Tornavam-se difíceis as menores providências sem luz e servia para ocupá-los, o que era melhor do que pensar. Falavam muito e quando ocupados iam descrevendo o que faziam. Quebrava-se, eventualmente, a corrente de palavras a ligá-los. Ninguém poderia saber, mas levantavam as cabeças ao mesmo tempo, a escutar, respirando forte, aguardando um milagre que não surgia.
Racionada e repartida, acabara-se a caixa de bombons. Ainda havia bolachas e leite em pó, porém, se a luz não voltasse depressa, era duro prever as conseqüências. As horas passavam. Deitados novamente, olhos fechados, lutando para dormir, aguardavam a manhã de frestas luminosas na janela. Mas acordaram como antes, os olhos inúteis, as chamas apagadas, os fogões frios e o alimento a acabar. Wladas repartiu as últimas rações de bolacha e leite. Diante da janela ficavam à espreita de uma luz. A parede negra parecia achatar-se em suas testas, impenetrável. Estavam inquietos. Guardavam boa quantidade de água, mas terminara o alimento. O prédio tinha dez andares, Wladas achou que devia ir até o último para enxergar a distância.
Saiu e começou a subir. Dos apartamentos vinham perguntas: “Quem está aí? Quem está subindo?”. Wladas se identificava, embora poucos inquilinos o conhecessem. Perguntavam o que ele queria e no sexto andar uma voz lhe assegurou: “O senhor pode subir até lá em cima, mas perde tempo. Estive lá agora, com dois companheiros. Não se vê nada, em parte alguma”. Wladas arriscou: “Meu alimento acabou, estou com um casal e dois filhos comigo. Vocês poderiam me arranjar?” A voz respondeu: “Nossa reserva dá justamente até amanhã. Nada podemos fazer...” Pensou uns segundos e resolveu descer. Diria a verdade aos seus amigos?
Quando o receberam com perguntas ansiosas, mentiu: “Não cheguei até lá. Encontrei alguém que fora há pouco. Disse que se vê qualquer coisa, muito longe, não souberam explicar.” O casal e as crianças se encheram de esperanças, enquanto ele sugeria a única idéia viável. Sairia novamente, armado de uma alavanca qualquer, e arrombaria a mercearia distante cem metros, mais ou menos. Ele conhecia o trajeto, não se perderia. Tirou a caixa de ferramentas de cima do armário, separou uma alavanca de ponta, martelo e torquês. Seu vizinho insistiu em ir também. Wladas nada disse, mas o desespero da mulher e das crianças de ficarem sós não o deixou. Colocou no bolso as ferramentas, enroladas em um saco vazio, e a alavanca presa no cinto, para ter as mãos livres. Pediu que não se preocupassem se não voltasse logo.
Saía do seu abrigo para furtar comida. Era para se temer o que encontrasse. A escuridão riscara as hierarquias. Nada mais valia o dinheiro, os documentos e carteiras de identidade. Não existiam polícia, governo e leis aplicáveis. Tinha-se que confiar em vozes, saídas das fisionomias ocultas, cujas mãos poderiam dar ou agredir. Wladas andava junto às paredes, o cérebro reconstruindo os detalhes daquele trecho. Suas mãos pesquisavam cada reentrância, de repente as lembranças se misturavam, o solo parecia girar debaixo dos pés, ficava parado, de costas na parede, a mão direita imóvel, apontando a direção a seguir. Aproximava-se lentamente do objetivo. Embora justificável, a intenção de roubo punha-o trêmulo, como se alguém tivesse meios de surpreendê-lo. Os dedos, palmo a palmo, seguiram o trajeto até tocar o ondulado da porta de aço. Não podia errar.
No quarteirão era a única casa comercial. Wladas estacou, a ouvir. Havia sons distantes, como os de uma enfermaria de hospital, de portas fechadas. Abaixou-se para descobrir o lugar do cadeado. Suas mãos não encontraram resistência. A porta estava só meio cerrada, não teria que arrombar nada. Curvou-se e entrou sem ruído. As prateleiras da direita teriam latas de alimento e doces. Colidiu com o balcão. Soltou uma exclamação e ficou imóvel, músculos repuxados, à espera. Ninguém falou nem fez barulho. Pulou o balcão e foi avançando a mão, tocou a tábua, foi deslizando-a pela prateleira. Não havia nada, certamente venderam antes da escuridão total. Levantou o braço, procurando com mais rapidez. Nada, nem um objeto. Foi trepando sem se importar com o barulho, os dedos secos com a poeira acumulada. Desceu sem precauções, o corpo inclinado para a frente, as mãos se agitando em todas as direções, batendo nos ângulos, ferindo-se nas paredes, com imprudência, como se disputasse com outro as latas e mercadorias que não existiam. Voltara algumas vezes ao mesmo ponto onde começara a procura. Não havia nada, em canto algum. Parou, ainda com ânsia de recomeçar e sabendo que nada adiantaria. Fora ingênuo em pensar que encontraria comida. Para os que não tinham reservas era evidente que as mercearias eram a única solução.
Wladas sentou-se em um caixote vazio e lágrimas apontaram dos seus olhos. Idiota que fora, esperando tanto. A pilhagem já a tinham feito, talvez no dia anterior, quando ouvira gritos e barulho. Como se arranjaria para comer e alimentar os seus amigos? Sentiu-se desamparado e ridículo, lembrando-se de sua calma inicial, com a banheira cheia d’água, o leite em pó, e em tão pouco tempo estar reduzido a nada, sem planos nem destino. Fazer o quê? Voltar com o fracasso, recomeçar a procura em outros armazéns distantes, cuja localização não conseguiria precisar? E se nada encontrasse? Saiu para a calçada, braços doloridos pelo esforço, à beira de um desespero que sabia perigoso. Estava só em um mundo limitado pelo comprimento dos seus braços. Teve receio de seguir para diante, enfrentar algum assaltante endoidecido pela escuridão.
Em passos largos foi voltando para casa, em busca de seus amigos invisíveis. Parou de repente, as duas mãos procurando um sinal conhecido. Passo a passo avançou alguns metros, descobrindo portas e muros até uma esquina desconhecida. Tinha que voltar à mercearia, para recomeçar o trajeto. Refez com cuidado o caminho percorrido, os dedos arranhados pela escuridão, a buscar a porta ondulada que não aparecia. Andara demais em todas as direções. Estava perdido. Impossível a menor noção de onde se achava, nem o que faria para descobrir o caminho da sua casa. Sentou na calçada, as têmporas latejando. Levantou-se como quem se afoga e gritou: “Por favor, estou perdido, quero saber o nome desta rua”. Repetiu vezes e vezes, cada vez mais alto, sem que ninguém respondesse. Quanto mais silêncio à sua volta, mais implorava, pedindo por piedade que o ajudassem. Por que o haveriam de fazer? Ele mesmo ouvira de sua janela gritos de socorro dos extraviados, cujas vozes desesperadas faziam temer a loucura de um assalto. Wladas afastou-se sem direção, a gritar por socorro, explicando que quatro pessoas dependiam dele. Já não tocava nas paredes, andando depressa, em curvas, como os bêbados, implorando informações e comida. Não sabia quanto se afastara da sua rua, tinha esperanças de que a achara: “Sou Wladas, moro no número 215, por favor me ajudem”.
Havia ruídos na escuridão, impossível que não o ouvissem. Chorava e pedia sem a menor vergonha, o manto negro reduzindo-o a uma criança indefesa. Quanto tempo se passara? Não sabia mais, seu relógio trabalhava, mas não trouxera uma lâmina fina para abri-lo, nem se importava com as horas. A escuridão abafava, entrando pelos poros, modificando os pensamentos. Wladas deixou de implorar. Xingava seus semelhantes aos berros, chamando-os de malditos, perguntando por que não respondiam. Seu desvalimento se transformou em ódio e empunhou a alavanca pesada, disposto a conseguir comida pela violência. Cruzou com outros como ele, pedindo esmola de alimento. Wladas avançava brandindo sua alavanca, até que colidiu com alguém, segurando-o com força. O homem gritou e Wladas, sem largá-lo, exigiu que dissesse onde estavam e como arranjaria comida. O outro parecia velho, rompeu em soluços de medo, Wladas afrouxou a pressão, deixou-o ir. De que lhe serviria andar armado de alavanca, agressor potencial daqueles que sofriam a mesma desgraça? Jogou no calçamento sua arma. Sentiu falta de apoio, sentou-se para não desfalecer, abaixando a cabeça entre os joelhos. Em qualquer posição o negrume completo tirava o equilíbrio. Melhorou um pouco mas percebeu o corpo alquebrado por esgotamento ou fome. Podia levantar-se ainda e continuou andando em silêncio. As trevas engoliram seu senso prático, e avançava na noite permanente em busca de auxílio.
Perder a vida assim era revoltante, Wladas tornou a clamar em voz alta, pedindo socorro, contando sua situação, argumentando com ouvidos invisíveis que o escutariam atrás das portas e janelas, sem coragem ou forças para responder. Virava as esquinas à esquerda, para não ir longe demais, é possível que estivesse a dar voltas no mesmo quarteirão, passando por sua casa e se afastando sem perceber. Exausto, com sede e fome, falava consigo mesmo, pedindo socorro bem alto de vez em quando. Sentou-se na calçada a perscrutar os menores barulhos, o vento batendo janelas soltas nos apartamentos abandonados.
Ruídos diferentes surgiam de várias direções, sons cavos, rascantes ou agudos, de animais ou homens, talvez presos ou esfomeados. Pôs a mão em concha nos ouvidos. Um leve bater ritmado de passos se aproximava. Gritou por ajuda e ficou à escuta. Uma voz de homem, à distância, lhe respondeu: “Espere, irei ajudá-lo”. Wladas lhe agradeceu, pedindo que não tivesse medo, precisava de alimento e de quem o ensinasse a voltar para casa. Ainda falava quando sentiu um braço tocá-lo no ombro. Levantou-se e implorou que não o deixasse abandonado. O homem carregava um saco pesado e arfava de cansaço. Pediu que o ajudasse segurando uma das pontas, ele iria na frente. Wladas disfarçava os soluços, os braços doendo com o peso, falando sem parar o que acontecera, desde o começo. O homem lhe respondia com monossílabos e continuava a andar, com relativa rapidez. Wladas calou-se, sentiu algo inexplicável. Quase não podia acompanhá-lo e virava as esquinas com segurança. Uma dúvida passou-lhe pela mente. Quem sabe seu companheiro enxergava, a luz voltava para os outros. Perguntou-lhe: “O senhor anda com tanta certeza. Por acaso o senhor... vê alguma coisa?” O homem demorou um pouco: “Não, não enxergo absolutamente nada. Sou completamente cego.” Wladas gaguejou: “Antes... disto, também?” “Sim”, respondeu, “sou cego de nascença, vamos para o Instituto dos Cegos, onde moro”. Wladas sentiu uma emoção paradoxal. Aquele homem sabia os caminhos, sua voz era natural, não tinha o tom ansioso que já se habituara a ouvir. Entretanto a escuridão de ambos era a mesma. Só que o cego, que se chamava Vasco, nela sempre vivera, era seu mundo, feito de ruídos, cheiros e o alisar dos dedos nas coisas sólidas. Ele saíra para buscar o saco de alimentos e precisara da ajuda de Wladas para carregá-lo.
O cego contou-lhe que auxiliaram pessoas perdidas e recolheram algumas, mas o estoque de alimentos era escasso, não podiam hospedar mais ninguém. A escuridão permanecia, sem nenhum sinal de que fosse terminar. Em breve milhares de pessoas morreriam de inanição e nada se poderia fazer.
Chegaram, por fim, ao Instituto dos Cegos. Wladas deixou-se levar pelas salas até um lugar onde lhe deram uma cadeira. Sentia-se um menino a quem os adultos salvam de um perigo e lhe dão conforto e segurança. Bebeu um copo de leite e comeu algumas torradinhas que lhe puseram nas mãos. Em sua lembrança, porém, crescia a imagem dos seus amigos com o coração aos saltos a cada rumor, passando fome, aguardando sua volta. Pediu para falar com Vasco, seu salvador, e insistiu de todas as maneiras que não poderia deixar seus vizinhos presos no apartamento. Eles ponderaram que o prédio era grande, todos os outros moradores mereciam ajuda, coisa impraticável. Wladas lembrou as crianças, pediu-lhes que lhe ensinassem o caminho, iria sozinho. Levantou-se para sair, tropeçou em algo, caindo. Vasco, embora os outros relutassem, lembrou que havia a banheira cheia d’água, poderiam trazer um suprimento que logo se faria necessário. Trouxeram duas grandes vasilhas plásticas e Vasco conduziu Wladas para a rua. Amarraram uma cordinha no cinto de ambos. Podiam assim andar um atrás do outro, com menos perigo dos obstáculos. Vasco disse que eram cinco quarteirões de distância. Nascera naquele bairro e o conhecia perfeitamente.
Amarrado ao seu guia, sentia agora o medo dos que vislumbram uma salvação ainda duvidosa e frágil. Andavam o mais depressa possível, Vasco escolhendo os melhores lugares, a dizer o nome das ruas, mudando o itinerário quando ouviam rumores suspeitos ou gritos enfurecidos. Vasco parou e disse baixinho: “Deve ser por aqui”. Wladas avançou alguns passos, reconheceu a maçaneta trincada de sua porta. Vasco sussurrou-lhe que tirasse os sapatos, iriam sem fazer barulho. Depois de os amarrarem no cinto, entraram, Wladas na frente, ultrapassando a escada de dois em dois degraus. Batiam nas coisas do caminho e notavam vozes ininteligíveis através das portas.
Chegados ao terceiro andar se encaminharam ao apartamento do vizinho. Bateram devagar, depois mais forte. Ninguém atendeu. Imaginaram que estavam no outro, pois Wladas lhes deixara a chave para usarem a água. Foram para lá. Ouviram ruído e uma voz perguntou: “Quem está aí?” “Sou eu, Wladas, deixe entrar”. Ele fez uma exclamação como quem não acreditava e abriu, estendendo os braços que o amigo pegou. “Sou eu mesmo, como estão vocês, trouxe um companheiro que me salvou e sabe o caminho”. Não disse que era cego, parecia que a palavra se identificava com a desgraça de todos. Rodeado pela mulher e as crianças, diferentes, com as vozes sumidas de fraqueza, o senhor grisalho contou-lhes dos seus padecimentos, alimentando-se só de água, com as esperanças e os desânimos à espera do amigo. Este explicou-lhes a situação do Instituto dos Cegos e que teriam de partir para lá.
No banheiro encheram de água as duas vasilhas, que Vasco amarrou nas costas de ambos com uma tira de pano. Ajudou a identificar alguns agasalhos para levar, tiraram os sapatos e, em fila, segurando-se nas mãos, foram para a escada. Iam depressa, era inevitável serem pressentidos. No térreo, perto da porta, uma voz indagou: “Quem são vocês, o que levam?” Ninguém respondeu, Vasco foi puxando todos para a rua. A voz se movimentou na direção deles, mas estavam na calçada a caminho. O homem gritou para responderem se tinham água ou comida. A fila se distanciava, dificilmente seriam perseguidos.
Continuaram descalços, para não perderem tempo, embora as peles sensíveis se machucassem nas irregularidades do caminho. Levaram mais tempo na volta por causa das crianças e as paradas, quando escutavam barulhos próximos. Chegaram cansados no Instituto, com o alívio provisório de soldados que ganham uma licença depois de uma batalha.
Vasco serviu-lhes leite com aveia e foi discutir com os companheiros o que fazer para sobreviverem se a escuridão continuasse. Outro cego arranjou-lhes um lugar onde podiam dormir, o que não foi difícil pois não o faziam há muito tempo. Horas depois Vasco foi acordá-los, dizendo que eram três horas da madrugada e que se decidira deixar o Instituto para se refugiarem na Chácara Modelo, que a instituição possuía a alguns quilômetros retirada da cidade. Era necessário, pois os mantimentos não durariam muito e não havia meio de renová-los sem perigo. Embora fosse um caminho mais longo, eles planejaram seguir os trilhos da estrada de ferro, que cruzavam algumas ruas, poucos quarteirões além do Instituto. Por lá as dificuldades seriam mais improváveis. As últimas instruções eles as dariam no salão, para onde encaminharam Wladas e seus amigos.
Devia ser um local amplo, os rumores de vozes fazendo um burburinho. Vasco, que devia ser mais velho ou ter alguma ascendência sobre os outros, disse que era indispensável o maior realismo se quisessem sobreviver. Dirigiu-se aos companheiros cegos em primeiro lugar, afirmando que a escuridão que afligia os outros não constituía novidade para eles. O difícil era a impossibilidade de se produzir calor com combustão de qualquer espécie. Isso impedia a ingestão da maior parte dos alimentos comuns. Tinham recolhido 11 pessoas no Instituto. Com os 12 cegos que lá viviam, somavam 23. O alimento suscetível de ser comido daria para alimentá-los seis ou sete dias. Seria arriscado esperar que tudo se normalizasse dentro desse prazo, sem falar no risco de serem assaltados e roubados pelos marginais famintos. Na Chácara Modelo havia, normalmente, dez pessoas. Possuíam variadas plantações, mantimentos em estoque para comércio e água potável em quantidade, o que poderia, com economia e racionamento, garantir por tempo dilatado a vida de todos. Salientou Vasco que as possibilidades de manterem os organismos em razoável estado, mais de trinta ou quarenta dias, eram duvidosas. Urgia a união de todos e obediência às decisões. Concordaram que sairiam do Instituto em silêncio, sem responder a nenhum apelo, fosse qual fosse. Os adultos deveriam ajudar no transporte das latas de aveia, mel e alimentos secos que possuíam. Foi iniciada imediatamente sua embalagem e distribuição. Alguns pediram mais informes, outros deram sugestões. Ninguém discordou do combinado. Os cegos acabaram de distribuir os sacos, malas e caixas cheios para a viagem. Wladas e os refugiados estavam em seus lugares, parados. Nada podiam fazer, senão atrapalhar. Acompanhavam a movimentação, as ordens dadas em voz alta. Por esforço que fizessem, era perturbador lembrar que os cegos viviam na mesma escuridão. Como se habituar com aquilo, a sensação de vazio, a dificuldade em se orientar. Vestir a roupa era um problema, andar dois passos sem bater em nada. Viviam agora no mesmo mundo invisível e perigoso. Wladas pensava quantas vezes cruzara com esses homens de óculos escuros, bengala branca, a cabeça estática, voltada para a frente. É certo que lhes dedicava um rápido pensamento de piedade. Ah, se soubesse então, como eles iam se transformar em mágicos protetores, capazes de salvar outros seres, feitos de carne, músculos e pensamentos, e de olhos inúteis, iguais aos deles.
Como alpinistas, fizeram quatro grupos, ligados por uma corda. Os cegos conheciam o trajeto. A parte mais duvidosa seria transpor os quarteirões até a via férrea. Pediu-se o maior silêncio, só falassem quando fosse necessário. Wladas ficou no último grupo e levava um pequeno pacote. Sentiram no rosto a atmosfera fria de fora e caminhavam devagar. Atravessaram ruas e viraram esquinas, sentindo-se protegidos pela escuridão, já que confiavam nos guias. Quando nossa sobrevivência é ameaçada, uma dura couraça de egoísmo nos toma. Os gritos anônimos que ouviam nas trevas transformavam-se em empecilhos a evitar. A coluna carregada de mantimentos desviava-se dos que imploravam um pedaço de pão para sobreviver. O vento trazia gritos e a fila de náufragos deslizava na mais estranha das fugas, com seus timoneiros cegos. Quando sentiram nos sapatos o aço sem fim dos trilhos, a tensão aliviou. Havia um cruzamento ainda com outra rua, depois eram pontes e seria improvável encontrarem impedimentos sérios. O avanço tornou-se penoso, tinham de calcular os passos para não tropeçar nos dormentes. Passava o tempo, para Wladas eram muitas horas, embora sejam enganadoras essas impressões. Subitamente pararam. Vasco veio, de grupo em grupo, explicar que havia um trem ou vagões pela frente. Ele foi sozinho investigar. Assentaram-se para um descanso não muito bem aproveitado pois ouviam um som de algo arrastado ou arranhado. Vasco se demorava. Um murmúrio passado de boca em boca fê-los recomeçar a caminhada. Tinham que contornar os vagões. O barulho vinha de um deles. Passavam com o coração batendo, os ouvidos quase tocando as paredes de madeira. Homem ou animal, fechado, a morrer... Tudo ficava para trás, os pés fatigados se agitando numa correia sem fim. Wladas lembrou-se da grande caminhada quando prestou serviço militar. O sol a queimá-lo, o equipamento pondo os ossos doloridos, a sensação de fadiga sem remédio. Quanto a invejava agora, nesse túnel de pesadelo, andando como um condenado com seu capuz de morte. À escuridão levava toda a vida para os sapatos, que se transportavam por entre a pedra britada e o limite paralelo dos trilhos.
Wladas surpreendeu-se quando a corda amarrada no cinto o puxou para uma estrada de terra. Sem saber como, percebeu que estavam no campo. De que maneira os cegos descobriam o local exato? Talvez pelo olfato, o perfume de árvores como um limão maduro. Ele aspirava o ar. Conhecia aquele cheiro, era de eucaliptos. Podia imaginá-los em filas cerradas, de cada lado da estrada que percorriam. Talvez não fosse estrada, um simples trilho, como saber? A fila parou, tinham chegado. Era difícil se habituar com as transições bruscas que a ausência de visão trazia. Não sabiam o tamanho da propriedade, nem se havia segurança, nada. Foi-lhes permitido falar e fizeram perguntas simultâneas nem sempre respondidas. Havia na Chácara oito cegos e uns poucos empregados. Vasco disse que descansassem, mas já estavam sentados e deitados pelo chão. Wladas ficou perto do seu vizinho de apartamento. Alguns dormiram no piso duro, as crianças no colo dos pais. Do fundo vinham soluços abafados com um pano e alguém falando baixo. Provisoriamente terminara a luta urgente para não morrer de fome. Os cegos trouxeram uma sopa fria, onde parecia haver mel e aveia. Vasco dirigia a difícil manobra para não se colidirem. Estavam abrigados e tinham alimento. E os outros que ficaram na cidade, os doentes dos hospitais, as crianças pequenas...? Ninguém poderia nem queria saber. As maiores desgraças coletivas impressionam menos do que a menor parcela que nos aflige. Aos refugiados não fora preciso “fechar os olhos” às cenas de desamparo e inanição deixadas para trás, nas ruas e casas. Estavam cercados dentro de si mesmos, as suposições e pensamentos girando numa sucessão enganadora.
Enquanto Wladas circulou em seu bairro e apartamento, recordava-se da forma dos prédios, móveis e objetos. Em seu novo ambiente, os dedos inexperientes tocando aqui e ali não lhe davam base para uma idéia do conjunto. Ele, Vasco e outros estavam reunidos em círculo para estabelecer a norma de vida a seguir. É evidente que pouco podiam acrescentar à experiência dos cegos. Existiam nas hortas cenouras, tomates, verduras etc. No pomar, algumas frutas em ponto de comer. Dever-se-iam repartir rações iguais, um pouco mais fortes para as crianças. Especulava-se se as verduras sem raios de sol durante tantos dias não murchariam. Contou o encarregado do pequeno aviário que, desde o primeiro dia sem luz, alimentara as galinhas, mas que não tinham botado desde então. As cabras foram soltas e não sabiam se estavam vivas ou não. Cada refugiado deveria ajudar nos trabalhos gerais. A cooperação deles valeria menos do que os problemas de conduzi-los e ensiná-los.
Com a tensão do perigo imediato afrouxada, Wladas sentia as reações que a escuridão provocava. Suas palavras não seguiam mais o caminho direto para os olhos do interlocutor, não havia para incentivar seus argumentos um leve franzir de sobrancelhas, um sinal de cabeça aprovativo. Falar sem ver ninguém insinuava sempre a dúvida se prestavam ou não atenção. Nos músculos do rosto, mais inertes, sentia a falta de expressão que os cegos trazem. Os diálogos perdiam a naturalidade e quando não respondiam imediatamente parecia que não o tinham escutado.
Assim mesmo cuidaram dos problemas do alojamento, que seria coletivo, em um barracão com camas de capim cobertas de encerado. Foi regulado o uso dos poucos gabinetes sanitários. Vasco informou que eram dez horas da noite e deveriam dormir. Cada cego ficara encarregado de instruir um pequeno grupo, que chamava pelos nomes e conduzia em fila. Bater em obstáculos era comum. Alguém disse uma graça e houve um inesperado riso geral, como se a alegria desterrada tivesse voltado, por uns segundos, para iluminar os pensamentos ocultos nas trevas.
Wladas dormiu um sono pesado, com sonhos sem continuidade, cheio de luzes fortes e uma angústia que o envolvia. Acordou bruscamente e, durante um momento, esperou que acendessem uma lâmpada. Ele aceitava a realidade da cegueira, como algo fantástico e transitório. Imaginava que, em outros países, a situação fosse diversa, laboratórios e cientistas atômicos estariam pesquisando a salvação de todos. Antes de um cego vir buscá-lo, tinha de ficar no mesmo lugar. Não queria acordar ninguém, sussurrou o nome de Vasco e esperou. Não sabe como, ele veio ensinar-lhe aquele mundo vazio, onde as coisas se materializavam debaixo dos pés ou coladas aos seus dedos. É verdade que esses contatos perduravam na memória, e se adivinhava o buraco da véspera, as mãos reconheciam a forma tocada antes. Mas, quando mãos e pés palmilhavam um novo caminho, só os barulhos orientavam, ou tinha-se que chamar pedindo auxílio, para a experiência dos que eram filhos definitivos da escuridão.
Estavam no sexto dia sem luz. A temperatura descera, mas era normal nessa época do ano. Logo, o sol aquecia, de alguma maneira, a atmosfera. Não devia ser de ordem cósmica o fenômeno. Alguém citou profecias da Bíblia, o fim dos tempos. Outro sugeria misteriosa invasão por outro planeta. Falando alto, no escuro, Wladas tentava pôr equilíbrio nas suposições, filtrando-as em relação ao que a ciência poderia elucidar. Parece que não se tratava de invasão de outros planetas nem do fim do mundo. A terra, em seu deslocamento pelo espaço, teria sido penetrada por uma substância qualquer que atingisse o sistema nervoso central ao mesmo tempo que impedisse a combustão. Eram explicações tolas e improváveis tanto quanto as metafísicas e transcendentais. Vasco dizia que, mesmo sem consultar o relógio, ainda percebia uma sutil diferença entre as horas do dia e da noite. Wladas achava que era o hábito, o organismo acostumado com os sucessivos períodos de descanso e trabalho. De tempos em tempos alguém subia em uma escada situada junto à porta, do lado de fora, e virava a cabeça para os quatro pólos. Gritavam, às vezes, com entusiasmo, ao perceberem vagos clarões. Alvoroçavam-se, andando de braços estendidos até a porta, alguns em direção oposta, a bater nas paredes e perguntar: “Onde estão vocês? Viram alguma coisa, o que foi, o que foi?” De tanto se repetir a alegria se desgastou quando “vislumbravam” alguma novidade. Depois de exames e discussões, a sombra continuava total. A vida se desenrolava na Chácara com algumas confusões e transtornos, resolvidos pelos cegos. Wladas observou que conhecia quem o era, pelo tom de voz. Estranho afinal, pois ninguém via.
Os refugiados tinham uma perceptível nota de amargura no que diziam ou pediam. Quando tentavam frases alegres, as sombras eliminavam o sorriso, a vivacidade dos olhos. Quando enxergamos, são eles que dão à palavra um tempero sutil, espécie de auréola intraduzível que não mais existe no escuro. Os cegos tinham inflexão de voz diferente. Não se poderia saber se fora a própria escuridão que os mudara. Era provável que sim. Em Vasco, com mais nitidez, percebia-se um modo firme, a maneira de quem age com segurança e melhor do que os outros e se sente bem. Aqueles mesmos homens de bengala branca e óculos escuros que perguntavam humildes qual o ônibus que vinha, ou se distanciavam devagar, atravessando os olhares piedosos dos passantes, eram agora rápidos, eficientes, milagrosos com sua habilidade manual. Respondiam às perguntas e levavam os refugiados pelo braço, com a solicitude e a satisfação de caridade prestada que antigamente recebiam. Eram pacientes e tolerantes para com os erros e incompreensões dos seus protegidos. Tornara-se de todo o mundo a desgraça particular deles. Alguns esqueciam-se, às vezes, que aqueles homens que contavam sua vida de um mês atrás no mundo das luzes e cores, tornavam-se inexperientes como criancinhas na negridão que eles dominavam. Eram insuficientes as mãos para os trabalhos que a vida e a subsistência do grupo exigia. Havia pouco tempo de folga, mas após a última refeição, os cegos cantavam, acompanhados de dois violões. Wladas notava o entusiasmo natural e até uma alegria que a situação não comportava. Por segundos imaginou os outros enxergando e ele cego, como estava. Quanta piedade hipócrita e superficial e esmolas deprimentes teriam suportado com seus óculos escuros e bengalas brancas. Agora se identificavam com prazer, eram os guias que prestavam favor e alimentavam generosamente os de olhos perfeitos.
Quando não se pode alterar uma situação, tem-se que enfrentá-la ou perecer. Wladas notou que as crianças resistiam melhor às circunstâncias do que os adultos. Os dois filhos do seu vizinho tiveram medo no princípio, mas a contínua proximidade dos companheiros fê-los saírem em explorações difíceis de controlar. A mãe gostaria que estivessem permanentemente ligados a ela. Os dois desapareciam, embora não pudessem se afastar demais. Eram repreendidos e até apanharam, o que provocava a intervenção de vozes conciliatórias.
Afinal, Wladas se surpreendia, eles já possuíam uma rotina. As idas ao gabinete sanitário, a higiene à beira do rio, as horas importantes das refeições que se tornavam cada vez mais insípidas, verduras murchas, pepino, tomate, mamão, aveia, leite, mel, nem sempre identificáveis pelo paladar. Nenhuma catástrofe, nenhum evento humano teria sido mais extraordinário e perigoso do que aquele. O que causava a escuridão e quando terminaria? Como falar em rotina se talvez estivessem já dentro das profecias, aquilo fosse o fim do mundo, vaticinado desde épocas imemoriais? Tinha-se que recalcar essa perspectiva sinistra e ir cuidando de banalidades essenciais, roupas e cuidados com o corpo, tudo que nos mantém vivos desde que nascemos. Muitos rezavam em voz alta, implorando um milagre. Um acontecimento geral se alteraria com pedidos isolados? Wladas não os criticava. Se a prece dava um pouco de esperança e paz de espírito, era também uma parcela de salvação. Se o negrume que os envolvia trazia desconforto e problemas, nada era em comparação com os pensamentos que a parede impenetrável lhes destilava no cérebro.
Sem a visão a distrair a mente, era difícil suportar os momentos de lazer. A dedicação ao trabalho se transformava em exagero, porque enquanto se controlava os movimentos dos dedos, era um cotidiano normal que se buscava, uma vontade de conservar um modo de vida absurdo, que não podia perdurar por mais tempo. Essa alternativa do fim, se o mundo voltaria ao normal ou os homens morreriam à míngua, constituía dilema mais pesado do que o escuro que os sufocava. Wladas não encontrava muito tempo para conversar com Vasco. Quando o fazia, notava que havia a preocupação com o futuro, menos angustiante do que a dele, porém. Colocados juntos numa experiência igual, tinham a impossibilidade de se colocar no ponto de vista do outro. Vasco nascera sem visão e não sabia o que era tê-la tido e perdido. Wladas não podia supor o estado de espírito de quem nunca enxergara. As habilidades mais elementares que aprendia mostravam-lhe a distância que o separava de Vasco e os outros, manipulando os objetos e os construindo quando necessário. A rotina se ajustava nos hábitos e horários, mas nunca na expectativa do fim duvidoso, que a diminuição dos alimentos indicava. Já estavam no décimo sexto dia. Vasco chamou Wladas em particular. Disse-lhe que mesmo as reservas que tinham economizado, de aveia, leite em pó, frios diversos, estavam terminando. O estado nervoso se agravava, não seria prudente avisar os outros. No dia anterior um dos refugiados, moço ainda, saíra pela porta afora, sem direção, até ser recolhido adiante, caído em um fosso. Discussões surgiam por somenos e se prolongavam sem motivos. A maioria estava na fronteira de um colapso nervoso que não teve tempo de irromper.
Nas primeiras horas do décimo oitavo dia, o salão foi acordado por gritos de alegria e animação. Um dos refugiados, que não conseguira dormir, sentiu uma diferença na atmosfera. Subiu na escada preparada do lado de fora. Havia na altura do horizonte uma pálida bola vermelha. Era o sol. Fez-se uma precipitação corrida, saíram ao mesmo tempo, com quedas e empurrões e lá ficaram, numa euforia contagiante aguardando que aumentasse a luz. Vasco perguntava se viam realmente, se não se tratava de engano como ocorrera tantas vezes. Alguém lembrou-se de riscar um fósforo e após algumas tentativas a chama apareceu, frágil e sem calor, mas visível aos olhos dos que a contemplavam como um milagre incomum. A luz aumentava lentamente do mesmo modo como desaparecera.
Foi um dia perfeito, com essas alegrias inesperadas e totais que agem como bebida alcoólica. Os corações pareciam aquecidos, cheios de boa vontade. Os olhos nasciam de novo como crianças inocentes sem maldade. Tomaram as refeições lá fora e Vasco resolveu reforçá-las, pois os dias normais voltariam. O sol fez seu giro esperado pelo céu. Às quatro horas da tarde já se distinguia a silhueta de uma pessoa a quatro metros. Depois que o sol se escondeu a escuridão voltou completa. Fizeram uma fogueira no terreiro, com chamas fracas e translúcidas, que pouco consumiam da madeira seca. Apagava-se freqüentemente e os refugiados tornavam a acendê-la com pedaços de papel e assopravam, conservando a pálida fonte de luz e calor, sinal de vida futura. À meia-noite foi difícil convencê-los de que deveriam se recolher e o fizeram quando Vasco pediu. Só as crianças dormiram. Os que ainda tinham fósforos riscavam-nos de tempos em tempos e riam sós, como se tivessem achado a pedra filosofal da felicidade.
Às quatro e meia da manhã estavam de pé, lá fora. Nenhuma madrugada na história do mundo fora esperada como aquela. Não era a beleza das cores, a poesia dos horizontes se descobrindo em nuvens e montanhas, árvores e borboletas. Como na Idade do Fogo o homem conservava a sua fogueira e a venerava, a divindade da luz era esperada pelos refugiados tal como um condenado à morte recebe um oficial com a comutação da pena. O sol veio mais forte, os olhos desacostumados se fechavam, os cegos estendiam as palmas das mãos contra os raios, davam voltas para senti-los em cada face. Nunca mais Wladas foi capaz de descrever aqueles momentos. O que são palavras para simbolizar uma vida que se recupera... Fisionomias diferentes surgiram, com vozes conhecidas e riam e se abraçavam. Os invólucros humanos guardando solidariedade e amor fundiram-se naquela madrugada sem limitações, que a própria luz traria depois. Os cegos foram beijados e abraçados, carregados em triunfo. Choravam, o que deixava mais vermelhos os olhos desacostumados com a luz. Pela metade do dia as chamas estavam normais e almoçaram pela primeira vez, depois de três semanas, comida cozida e quente. Ninguém mais trabalhou praticamente o resto do dia, encharcados de luz, absorvendo as perspectivas, andando pelos locais nos quais se arrastavam na escuridão e que lhes pareciam diferentes e fáceis.
E a cidade? Como estariam lá? Os que tinham parentes desmancharam os sorrisos. Quantos morreram ou passavam necessidades? Wladas sugeriu que ele deveria, no dia seguinte, pesquisar a situação. Outros se ofereceram, decidiu-se que iriam três.
Wladas passou mal a noite. O impacto de todos aqueles dias fazia agora seu efeito. As mãos tremiam, tinha medo, não sabia de quê. Voltar à cidade, recomeçar a vida... Ir à repartição, os amigos, mulheres... Os valores que prezava ficaram subvertidos e sepultados nas trevas. Era um homem diverso que se mexia no leito improvisado, sem poder dormir. Pela bandeira da porta dançava um quadrilátero de claridade, feito por uma lamparina acesa, aviso de que tudo estava bem. Ele tivera uma existência calma. Ter beirado o limiar da morte, sem visão, desgastara os limites da sua resistência. O que somos, o que valemos, para onde vamos? A memória trazia-lhe rápidos fragmentos, um latido de cão, o homem gemendo na calçada, sua mão brandindo a alavanca, Vasco conduzindo-o pelas ruas, o chefe conversando na janela... Trechos de sua infância se misturavam, o sono o tomou aos poucos, ele se agitava, a testa franzida em luta com os sonhos.
Partiram com o sol nascendo, pelo caminho que conduzia à estrada de ferro. Um deles de meia idade, casado, sem filhos. Sua mulher ficara na Chácara. O outro teria a idade de Wladas. Seus irmãos e irmãs moravam em outro lado da cidade. Fora salvo por um cego e não mais pudera voltar para casa. Caminhavam conversando a princípio, mas a vontade de chegar depressa fazia com que apertassem o passo e o cansaço os atingiu mais forte pela insuficiente alimentação daquelas semanas. As primeiras casas que rodeavam a linha tinham aparência normal. Após uma curva, surgiu a cidade. Depois das primeiras pontes os trilhos atravessavam ruas. Wladas e seus companheiros entraram por uma delas. Os dois primeiros quarteirões pareciam tão pacíficos, com algumas pessoas circulando, mais lentamente talvez. Na esquina seguinte havia um grupo de pessoas, carregando para um caminhão um morto, coberto com pano grosseiro. Os acompanhantes choravam. Passou um veículo verde do exército. Divulgava pelo alto-falante um boletim do governo. Fora decretada a lei marcial. Seriam fuzilados os que invadissem a propriedade alheia. O governo requisitava todos os depósitos de alimentos e os distribuiria aos necessitados. Qualquer veículo seria requisitado se necessário. Recomendava-se que se comunicasse à polícia imediatamente todos os lugares de onde exalasse mau cheiro, para se investigar a existência de cadáveres. Os mortos seriam enterrados em valas comuns...
Wladas não quis chegar até seu prédio. Lembrava-se das vozes chamando pelas portas entreabertas, ele a se esgueirar, descalço, largando-os à própria sorte. Teria de telefonar se houvesse mau cheiro... Já vira o suficiente, não queria permanecer ali. O jovem companheiro conversara com um oficial e decidira procurar a família imediatamente. Despediram-se emocionados, sem se lembrar sequer de deixar os endereços. O outro refugiado quis voltar com Wladas para a Chácara. Este não podia fazê-lo sem auxiliar a irmã. Indagou se os telefones funcionavam e soube que sim, alguns circuitos automáticos. Ligou para a casa do cunhado. Depois de algum tempo ele atendeu. Estavam muito fracos, mas vivos. No prédio houvera quatro mortes. Wladas contou-lhe rapidamente como se salvara e perguntou se precisavam dele. Não era necessário, havia alimentos, estavam melhor do que outros.
Todas as pessoas conversavam com desconhecidos, a contar histórias diversas. As crianças e os doentes foram os que mais sofreram. Havia casos de morte em circunstâncias pungentes. Os serviços públicos se reorganizavam, com a ajuda do exército, para socorrer os desamparados, enterrar os mortos e recomeçar tudo. Wladas e seu companheiro não quiseram saber de mais nada. Tinham andado alguns quarteirões e comido o pouco que trouxeram. Sentiam-se fracos, com um cansaço de raciocínio, vendo e ouvindo coisas raras, onde o absurdo não era hipótese, acontecera, à revelia da lógica e das leis científicas.
Voltavam pelos trilhos ainda vazios os dois vultos, caminhando devagar, debaixo de um agradável céu de nuvens. Árvores verdes tremiam com a brisa, alguns pássaros voavam por entre os galhos. Como tinham podido sobreviver na escuridão? Wladas pensava em tudo isso, enquanto suas pernas doloridas o conduziam. Suas científicas certezas nada mais valiam. Naquele mesmo instante homens combalidos faziam funcionar computadores eletrônicos, microscópios pesquisavam lâminas, religiosos em seus templos explicavam a vontade de Deus, políticos redigiam decretos, mães choravam os mortos que permaneceram nas trevas.
Dois vultos fatigados caminhavam por entre os dormentes. Traziam notícias, talvez melhores do que esperavam. O homem resistira. Roendo alimentos impróprios, tomando qualquer líquido, passara três semanas no mundo dos cegos. Wladas e seu companheiro voltavam tristes e enfraquecidos, mas com a abafada e secreta alegria de estarem vivos. Acima das especulações racionais, vinha o mistério do sangue correndo, o prazer de amar, realizar coisas, agitar os músculos e sorrir. Vistos, à distância, os dois eram menores do que os trilhos retos que os cercavam. Seus pensamentos pulavam as fronteiras e o tempo. O corpo voltava ao cotidiano, sujeito às forças e aos descontroles, desde o princípio das eras.
Havia planetas, sistemas solares e galáxias. Eram dois homens apenas, cercados por trilhos impassíveis, voltando para casa com seus problemas.
O conto “A escuridão”, de André Carneiro (1922-),
um dos principais autores  e estudiosos brasileiros de ficção científica,
 é de 1963,  e está contido na antologia organizada por Bráulio Tavares,
chamada Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros
(Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003).


Abraços,
Juliana Gobbe